A EXPERIÊNCIA HOMOSSEXUAL(PREFÁCIO)
A EXPERIÊNCIA HOMOSSEXUAL(PREFÁCIO)

A EXPERIÊNCIA HOMOSSEXUAL

PREFÁCIO

 

 

A HOMOSSEXUALIDADE NÃO SE LIMITA MAIS AOS HOMOSSEXUAIS.

Não é mais, como se pensava outrora, uma tragédia pessoal

que afligia alguns desafortunados, mas que, felizmente, não

afetava outras pessoas. Hoje, a homossexualidade diz respeito

a todo mundo, porque ela nos obriga a confrontar questões

que se tornaram centrais para todos nós. Não há dúvida de que

as instituições tradicionais do casamento e da família estão

em crise, assim como as relações entre os sexos e a própria

definição do amor. Muitas pessoas procuram modelos alternativos

para o casal. E muitos dentre nós exploram formas diferentes

de comunicação e de engajamento, que possam nos

oferecer relações mais íntimas e mais igualitárias, ao mesmo

tempo em que preservamos nossa liberdade individual.

Quais formas podem assumir o casal quando o casamento

não é mais o único modelo possível? Podemos pensar outras

escolhas para o amor, a amizade e o sexo entre duas pessoas?

Do mesmo modo, todos nós nos perguntamos sobre a natureza

da masculinidade e da feminilidade em nossa época. Como

são os homens quando não têm mulheres com eles? Como são

as mulheres quando vivem sem homens? Nos dois casos, como

evolui a relação de casal, quando ela não é mais determinada

pelas exigências da heterossexualidade?

A homossexualidade atual nos oferece algumas respostas.

Mostra-nos modelos alternativos de casal, de comunicação e de sexualidade.

Revela-nos algumas características profundas das mulheres

e dos homens quando se tornam independentes do outro

sexo. Os homossexuais ilustram traços, condutas e formas de relação

que vão além dos papéis tradicionais ditados pela sociedade.

Mas a homossexualidade não é somente uma orientação

sexual nem um modo de ser puramente íntimo. Representa também

uma posição perante a vida e a sociedade. Os homossexuais

são ainda, quase por toda parte, uma minoria discriminada e

marginalizada. Ao mesmo tempo, fazem parte da sociedade heterossexual:

pertencem a todas as raças, todas as classes sociais,

todas as religiões e profissões e todos os países. O que significa,

hoje, fazer parte da sociedade, ao mesmo tempo em que se rejeitam

as suas normas mais essenciais? Se refletirmos sobre os

grandes debates de nossa época que dizem respeito à integração

e à marginalização, aos direitos civis das minorias, à possibilidade

de um pluralismo inclusivo, veremos que as questões colocadas

pela homossexualidade dizem respeito a todos nós.

Tentarei neste livro apresentar as pesquisas atuais sobre

o assunto, completando-as pela minha própria experiência, pessoal

e clínica. Tentei, antes de tudo, expor a dimensão psicológica

da homossexualidade e descrever a experiência subjetiva

dos homossexuais. Não pretendo apresentar um estudo sociológico,

literário ou histórico — esses temas foram e continuarão a

ser tratados em profundidade por especialistas nesses assuntos.

Também não quis escrever um tratado sobre o Movimento de

Liberação Gay. Isso já foi feito por pessoas muito mais gabaritadas

do que eu, por terem participado diretamente desse grande

movimento social. Enfim, o leitor encontrará apenas poucas

referências à AIDS, apesar de seus efeitos indubitáveis sobre a

homossexualidade contemporânea — mas o vírus não faz parte,

no final das contas, da identidade homossexual.

Meu assunto é antes a Psicologia da Homossexualidade

como tal — um campo de conhecimentos que se desenvolveu

graças justamente à evolução social e cultural dos últimos trinta

anos. Tentei também transcender as fronteiras na medida do

possível: seguramente, não é a mesma coisa ser homossexual

nos Estados Unidos, no México ou na França, mas certos aspectos

da subjetividade homossexual são, contudo, generalizáveis,

e são esses que tentei isolar. Finalmente, não pretendo apresentar

um tratado para especialistas, mas antes um texto acessível

e útil destinado aos homossexuais, às suas famílias e a seus terapeutas.

Portanto, o leitor encontrará aqui narrativas e exemplos

extraídos da experiência vivida pelas pessoas entrevistadas, assim

como numerosas recomendações práticas para os terapeutas

e temas de reflexão para os próprios homossexuais.

Assim, examinarei as diferentes definições e explicações

da homossexualidade e a maneira pela qual se constrói

a identidade homossexual do ponto de vista subjetivo e social.

Estudarei a infância, a adolescência e a idade adulta no

homossexual, e o papel particular que ele desenvolve na sua

família de origem, enquanto a única criança a não se casar e

não ter filhos. Veremos também a maneira como o machismo

afeta a definição e a percepção social da homossexualidade

em um país como o México. Analisarei as vicissitudes da clandestinidade

(ou do “armário”, segundo o termo consagrado),

com suas vantagens e desvantagens, e apresentarei estratégias

para dele sair. Em seguida, examinarei as inúmeras manifestações

da homofobia interiorizada que afeta em tantos níveis

o funcionamento psicológico e social dos homossexuais e dá

à sua experiência subjetiva uma tonalidade totalmente específica.

Abordarei também as dinâmicas particulares do casal

homossexual, tanto masculino como feminino, destacando as

profundas diferenças que distinguem um do outro. Irei me debruçar

igualmente sobre o papel central da amizade na vida

homossexual. Analisarei as interpretações atuais da bissexualidade

e questionarei em que medida ela pode constituir uma

orientação sexual propriamente dita. Finalmente, apresentarei

algumas reflexões sobre o papel que a homossexualidade

desenvolve na cultura e na sociedade contemporâneas, sobre

as vantagens e desvantagens de ser homossexual em nossa

época, e sobre as perspectivas para o futuro.

Este livro não é e não poderia ser o fruto de um esforço

puramente pessoal. Apóia-se sobre o trabalho de gerações de pesquisadores,

de criadores e de militantes que lutaram contra a

ignorância e o preconceito para libertar não somente os homossexuais,

mas todo mundo. É a eles que dedico esta contribuição.

CAPÍTULO I

T E

UMA IDENTIDADE MUTANT E

COMEÇAMOS COM UM PARADOXO: HOMOSSEXUAL NEM SEMPRE

é HOMOSSEXUAL.

O heterossexual, sim. Em todas as relações

sociais, profissionais e familiares, sua orientação sexual

é sempre uma parte de sua identidade essencial. O homem

heterossexual entra em relação com os homens e as mulheres

de um certo modo, que exprime abertamente sua orientação,

globalmente invariável. A mulher heterossexual tem gestos,

condutas e maneiras de falar que refletem não somente sua feminilidade,

mas também sua heterossexualidade. Nos dois casos,

sexo biológico, orientação sexual e papéis sociais tendem

a convergir e formar uma identidade relativamente estável.

Em contrapartida, o homossexual não se desloca no

mundo com uma identidade constante. Suas atitudes, seus

gestos, seu modo de entrar em relações com os outros mudam

conforme as circunstâncias. Ele pode parecer heterossexual no

escritório, assexuado na família, e expressar sua orientação sexual

somente na presença de alguns amigos. Ou então, durante

longos períodos de vida, pode negar completamente sua homossexualidade

e parecer exatamente o contrário: um Don Juan ou

uma mulher fatal sempre à procura de novas conquistas.

Além do mais, o heterossexual foi educado para sê-lo;

desde a mais tenra infância, foi formado para um papel e um

lugar no mundo heterossexual. Este não é o caso do homossexual,

que muitas vezes só toma consciência de sua orientação

sexual no decorrer da adolescência ou da idade adulta. Portanto,

ele não cresceu em seu papel; não foi educado para ser

homossexual. Falta-lhe todo tipo de habilidades e de códigos

sociais de que necessitará em um mundo homossexual, que

será o seu. Quando descobrem, enfim, sua orientação sexual,

devem reaprender todas as regras do amor, da amizade e da

sociabilidade. Não é surpreendente o fato de que podemos ler,

na literatura psicológica tradicional, que os homossexuais são

pouco maduros” em suas relações sociais e de casal. Contudo,

não se trata de uma falta de maturidade, mas sim de carência

de aprendizagem.

A identidade homossexual não é dada. Constrói-se aos

poucos e nem sempre se expressa da mesma maneira: muda

de acordo com o contexto imediato e os momentos da vida. O

homossexual, portanto, não é homossexual do mesmo modo

que o heterossexual é heterossexual. Suas relações com os

outros e com ele próprio são muito diferentes; nesse sentido,

poderíamos dizer que o homossexual vive em um universo interior

muito diferente, e que, na maior parte do tempo, não

se vê do lado de fora. Muitos homossexuais tentam, de fato,

se tornar invisíveis e passar por heterossexuais aos olhos da

sociedade, de sua família e de seus amigos.

Isso afeta inevitavelmente seu modo de ser no mundo.

Acostumados a esconder uma parte essencial de seus desejos

e de suas necessidades afetivas, em geral mostram apenas um

aspecto superficial deles mesmos. Muitos têm dificuldade de

expressar, e até mesmo de identificar, seus sentimentos; podem

parecer superficiais ou pouco interessados pelos outros.

Escondem, às vezes, sua realidade cotidiana: assim, ouvimos

homossexuais que vivem há anos com alguém falarem como

se estivessem sozinhos. Pode-se facilmente concluir que são

pessoas solitárias, pouco sociáveis ou sinceras. E esta impressão

pode lhes causar dificuldades, tanto na vida social como

na esfera íntima. Entretanto, o problema não é que eles rejeitam

a sociedade, mas sim que a sociedade os rejeita.

Desde a Revolução Homossexual e o Movimento de Liberação

Gay dos anos 1970 e 80, existem nos países “desenvolvidos”

uma atitude muito mais aberta e tolerante em relação à

homossexualidade. Esta não é mais considerada um crime nem

uma doença, e cada vez mais homossexuais “saem do armário”,

tanto na vida pública como na vida privada. Sem dúvida

essa evolução foi positiva para os homossexuais e para suas famílias.

Mas também engendrou uma série de mal-entendidos.

Em especial, espalhou-se a idéia de que o homossexual

e o casal homossexual são “normais” e, portanto, essencialmente

iguais” aos heterossexuais, e tendemos a percebê-los e

julgá-los segundo os critérios sociais aplicados a estes últimos.

Ora, o indivíduo homossexual não é como o heterossexual, e

o casal gay ou lésbico não é como o casal heterossexual: apresentam

dinâmicas, etapas, problemas e recursos específicos.

Um terapeuta não deve tratar seus pacientes gays como se

fossem heterossexuais nem aplicar os mesmos critérios diagnósticos.

A homossexualidade — em suas práticas e suas dinâmicas

não é uma cópia malfeita de um original que seria a

heterossexualidade; tampouco um fenômeno equivalente. O

fato de “normalizar” a homossexualidade reduziu-a, na verdade,

a seus aspectos mais simples, e constitui por isso mesmo

uma distorção. Este livro, portanto, não tentará “inocentar” a

homossexualidade nem demonstrar que é um modo de vida

normal” parecido com a heterossexualidade. Ao contrário,

irá se esforçar em detectar, explicitar e explicar suas particularidades:

a diferença, e não a semelhança.

Um outro mal-entendido que tentaremos dissipar é a

tendência, por parte de muitos heterossexuais, para amalgamar

a experiência das mulheres e dos homens homossexuais.

Embora compartilhem uma marginalização social similar,

suas formas de vida e de casal são essencialmente diferentes.

Historicamente falando, a relação entre a população homossexual

masculina e a feminina sempre foi problemática. Desde

as primeiras associações homófilas na Inglaterra do século

XIX, que não aceitavam as mulheres, até os setores mais radicais

do feminismo atual, que rejeitam qualquer cooperação

com os homens gays, as relações entre mulheres e homens homossexuais

foram marcadas por uma certa desconfiança.

Foi apenas há aproximadamente vinte anos (na época

da Liberação Gay) que as duas comunidades forjaram uma

aliança em favor dos direitos civis dos homossexuais. Mas essa

convergência estratégica foi minada pela AIDS, que dizimou

a população masculina mas não a feminina. Apesar da implicação

da comunidade lésbica na luta contra a AIDS, muitas

mulheres se afastaram diante de um fenômeno que elas percebiam

como o resultado de uma promiscuidade tipicamente

masculina. Portanto, poderíamos dizer, de um ponto de vista

histórico, sociológico, político e psicológico, que a experiência

homossexual é profundamente diferente para os homens

e para as mulheres. Novamente, este livro procurará apontar

precisamente as diferenças, além das semelhanças.

Esses mal-entendidos, bastante generalizados, produzem

hoje seus frutos. Enquanto a pesquisa e a organização

social, política e jurídica avançam rapidamente nas comunidades

gays e lésbicas dos países industrializados, a maioria das

pessoas está sempre presa a certos estereótipos — tanto novos

como antigos. Apesar dos grandes progressos do conhecimento

e dos direitos civis, o homossexual permanece uma figura

misteriosa: risível para uns, ameaçadora para outros. Apesar

de ele ser cada vez mais visível na cultura, cada vez mais presente

na sociedade, permanece, contudo, uma personagem

radicalmente desconhecida.

O preço dessa marginalização está cada vez mais alto.

Quando a homossexualidade era um fenômeno isolado e escondido,

era fácil pô-la de lado. Não trazia muitos problemas

para as famílias, nem para as instituições, nem para as autoridades.

Quase não se falava dela, e era razoável pensar que não

existisse — em todo caso, não entre as pessoas honestas. Nossos

pais e avós podiam dizer, com toda a franqueza, que eles nunca

tinham conhecido homossexuais. Esse desconhecimento,

às vezes trágico para os homossexuais, não trazia problemas

para a sociedade. Não é mais esse o caso. Hoje, os homossexuais

estão cada vez mais visíveis nas famílias, nos locais de

trabalho e na sociedade em geral. Os heterossexuais são obrigados

a enfrentar os problemas que a homossexualidade pode

lhes causar em todos os domínios: eles não podem mais se dar

ao luxo de ignorá-la.

Ademais, se a homossexualidade se define em relação à

heterossexualidade, o inverso também é verdadeiro. A homossexualidade

nos obriga a questionar nossos preconceitos que

dizem respeito ao amor, às relações entre homens e mulheres,

e à natureza da amizade. Os homossexuais apresentam um

novo tipo de casal, outras regras do jogo, que podem ajudar

os heterossexuais a renovar suas relações humanas. Em uma

palavra, os heterossexuais poderão conhecer melhor e desenvolver

sua própria sexualidade na medida em que entenderem

melhor a orientação homossexual, libertando-se assim de preconceitos

e de estereótipos que os afetam igualmente.

Vários autores, entre os quais Michel Foucault, em sua

Histoire

de la sexualité

1, observaram que a identidade homossexual é

um fenômeno relativamente recente. Antes do século XIX, havia

práticas homoeróticas (mais ou menos toleradas em diferentes

sociedades), mas não pessoas homossexuais. Aqueles que tinham

práticas homoeróticas não eram considerados seres à parte,

nem por eles mesmos nem pela sociedade: não se concebia a

existência de uma identidade fundamentalmente diferente. Isso

mudou na era moderna, com a penalização da homossexualidade

pelos Estados e sua patologização pelos médicos. Assim,

apareceu pela primeira vez a figura do homossexual, cuja identidade

essencial está definida pelo seu comportamento sexual.

Essa categorização deu lugar, por sua vez, ao nascimento de uma

comunidade — e, portanto, de uma cultura — especificamente

homossexual nas grandes cidades. Portanto, pode-se dizer que

historicamente também a identidade homossexual constrói-se

aos poucos: os processos sociais e individuais, sociológicos e psicológicos

são paralelos e se nutrem reciprocamente.

A pergunta “quem é homossexual?” suscita sempre

grandes debates. Nos anos 1970 e 80, o Movimento de Liberação

Gay propôs a liberação não somente de uma população

específica, mas do homossexual em cada um de nós. Estipulou

a existência de uma bissexualidade natural e inerente a todos

os seres humanos. Bissexualidade que é depois circunscrita e

reprimida pela socialização heterossexual. O objetivo era, portanto,

libertar não somente os homossexuais, mas a sociedade

em seu conjunto. Esse programa foi modificado ao longo dos

anos 1990. As associações gays nos países desenvolvidos fixaramse

um objetivo muito mais restrito, ao adotar um modelo

étnico da homossexualidade: nessa perspectiva, os homossexuais

constituem uma comunidade, que, como toda minoria

oprimida, deve ter os mesmos direitos que a maioria, mantendo

ao mesmo tempo uma identidade cultural própria. Mais

recentemente, o Movimento Queer propôs a abolição de todas

essas categorias, argumentando que qualquer classificação

fundamentada sobre a sexualidade, ou até mesmo o gênero,

deriva de um discurso social essencialmente repressivo.

A pergunta “o que define a homossexualidade?” nem

sempre tem resposta certa. Um grande número de pessoas tem

práticas homoeróticas, sem por isso se considerar homossexuais,

outras se acreditam homossexuais sem nunca ter tido relações

sexuais com alguém do seu próprio sexo. Existem homens

para quem o ato sexual em si não é importante — mas que recusariam

veementemente beijar um homem na boca, porque seria

uma prova de homossexualidade. Em certos países do Terceiro

Mundo, um homem que penetra outro homem não se considera

homossexual: ao desenvolver um papel ativo (seja com homens

ou com mulheres), ele é um homem “de verdade” e, certamente,

não um homossexual. Nessa ótica, só é homossexual aquele que

é penetrado. E como definir as pessoas que têm relações heterossexuais,

mas fantasias homoeróticas? Ou vice-versa? O que dizer

das pessoas que, vivendo há anos com alguém do mesmo sexo,

negam categoricamente ser homossexuais? Devemos concluir

que elas estão mentindo ou que mentem para si mesmas? Para

complicar as coisas, o que acontece quando uma lésbica tem uma

relação com um homem? Ela ainda é lésbica? A identidade sexual

é um atributo fixo das pessoas ou muda conforme a relação

do momento? Se um homem homossexual e uma lésbica têm

uma relação sexual, é um ato homo ou heterossexual? E o que

dizer se, durante essa relação, os dois alimentam fantasias homoeróticas?

Certos teóricos diriam que se trata de uma relação

essencialmente homossexual, mesmo que fisicamente implique

um homem e uma mulher. A pergunta se torna então: a homossexualidade

se refere ao domínio físico ou ao afetivo? Às práticas

ou ao pensamento? Às reações fisiológicas ou às emoções? E o

que acontece se os dois níveis não coincidem, o que acontece

com freqüência tanto nos hétero como nos homossexuais?

A essas perguntas é preciso acrescentar outras, que podem

parecer mais simples e até mesmo absurdas, mas que

foram longamente debatidas e continuam a ser problemáticas

para a maioria das pessoas. Um homem que tem relações

homoeróticas é sempre um homem? Uma mulher que tem relações

sexuais com outra mulher é realmente uma mulher?

Muitos heterossexuais diriam que não — mas a maioria dos

homossexuais não hesitaria em afirmar o contrário. Isso reflete

em parte um problema de definição: pelo menos na cultura

popular, ser homossexual significa ser “menos homem” ou

menos mulher”. Trata-se aqui de uma confusão muito presente

entre gênero e sexualidade — que, como veremos mais

adiante, são duas coisas muito diferentes.

Em certas sociedades, considera-se que a homossexualidade

feminiza” o homem: ela o torna como as mulheres. E,

portanto, o rebaixa. Mas, em outras culturas, pensa-se que a homossexualidade

masculiniza” o homem. Assim, certos povos

das Ilhas do Pacífico acreditam que os meninos devem ingerir sêmen

para se tornar homens; e que, mesmo casados, os homens

devem manter relações com outros homens para lhes dar força

e coragem. Esses exemplos mostram que não há relação estável

entre homossexualidade, masculinidade e feminilidade: as significações

mudam de acordo com o contexto social e cultural.

Até '6Desmo no mundo ocidental, a relação exata entre

gênero e orientação sexual se tornou cada vez mais complexa.

Antes, era fácil pensar (e muitos ainda pensam assim) que o homossexual

era um homem efeminado e a lésbica, uma mulher

masculinizada — do ponto de visto da anatomia, dos hormônios,

da personalidade ou mesmo da “alma”. Nessa perspectiva,

a homossexualidade era um problema de gênero: o homossexual

não era um “homem de verdade”, nem a lésbica era uma

mulher de verdade”. Faltava-lhes algo. Na verdade, durante

muito tempo uma escola de pensamento psicanalítico afirmou

que a homossexualidade se devia a uma série de falhas, de lapsos

no desenvolvimento. Por exemplo, no homem ela podia ser

explicada por uma relação deficiente com o pai, pela ausência

de um modelo masculino com o qual se identificar.

Sabe-se atualmente que as coisas não são assim tão simples.

Por um lado, não se conseguiu evidenciar diferenças sensíveis

entre a infância ou a dinâmica familiar de homossexuais

e de heterossexuais: crianças que “tendiam” à homossexualidade

não se tornaram homossexuais quando adultos, e muitos

homossexuais tiveram, em contrapartida, uma infância e uma

vida familiar tediosamente “normais”. Por outro lado, existem

homens muito masculinos e mulheres muito femininas que

são homossexuais. E os anos 1980 e 90 viram surgir uma sensibilidade

e um modo de vida que poderiam ser qualificados

de andrógenos. As diferenças que permitiam outrora falar de

comportamentos ou de temperamentos propriamente masculinos

ou femininos se apagaram. Não estamos mais na época

em que um eminente psiquiatra pôde escrever: “Podemos sempre

suspeitar da homossexualidade nas mulheres que têm os

cabelos curtos, se vestem de acordo com a moda masculina ou

que cultuam os esportes ou os lazeres masculinos”2.

Os limites entre homossexualidade e heterossexualidade

tornaram-se também cada vez mais obscuros. Desde a Revolução

Sexual dos anos 1970, falou-se muito da bissexualidade

ser uma característica inata, um estado natural do ser humano.

Nessa ótica, a orientação sexual não é dada pela biologia, mas

construída por meio das histórias social e pessoal. Essa idéia,

embora sedutora, deu também lugar a uma série de mal-entendidos.

Pois se todos nós temos a possibilidade ou o potencial

para ser hétero — ou homossexuais —, isso não explica por que

somente algumas pessoas se tornam homossexuais, nem como

a orientação sexual pode mudar em um dado momento. Em outras

palavras, se todos nós somos bissexuais, não o somos com

certeza do mesmo modo. Em certo sentido, o conceito da bissexualidade

(que é extremamente complexo, como o veremos

mais adiante) se tornou uma fórmula fácil, uma explicação válida

para qualquer situação, permitindo enfrentar fenômenos

que vão muito além das etiquetas que podemos lhes aplicar.

Paralelamente, nossa época viu uma proliferação de explicações

relativamente simplistas da homossexualidade. No

decorrer dos últimos anos, os estudiosos procuraram características

hormonais ou genéticas próprias da homossexualidade.

Descobriram, por exemplo, que, se um homem homossexual

tiver um irmão gêmeo idêntico, existem fortes chances

de que esse irmão seja também homossexual — essas chances

diminuem se se tratar de gêmeos fraternos ou de um irmão

que não seja gêmeo. Portanto, existem indícios (nem muito

precisos nem muito conclusivos) a favor de uma dimensão genética

da homossexualidade. Os pesquisadores também descobriram

algumas diferenças em nível hormonal e até mesmo

cerebral entre os homo e os heterossexuais, mas nem sempre

elas estão presentes. Algumas dentre elas são aplicáveis aos

homens, mas não às mulheres. Outras, detectadas em certos

níveis hormonais pré-natais, não são conclusivas: se parecem

ter desenvolvido um papel em certos casos, não estão presentes

em todos os casos estudados. E não se descobriu ainda nenhum

traço genético “homossexual” que seja comum às lésbicas

e aos homossexuais de uma mesma família.

Nenhuma das teorias da homossexualidade existentes

até o momento — sejam elas de ordem psicanalítica ou hormonal

é suficiente para explicar por que certas pessoas são homossexuais

e outras não. Tudo isso sugere que não existe uma

só explicação, mas várias, que agem conjuntamente: biológicas,

sociais, culturais, familiais e pessoais. Entretanto, para muitos

homossexuais e suas famílias a questão permanece crucial.

Contudo, devemos nos perguntar por que é tão importante

conhecer as causas da homossexualidade. Afinal de contas,

os heterossexuais nunca se perguntam por que eles são

heterossexuais. E nenhum psicólogo ou psicanalista, ao explorar

a história de um paciente, terá a idéia de procurar as causas

históricas de sua heterossexualidade. Essa questão se torna

pertinente somente quando a orientação sexual é percebida

como anormal, ou como um déficit. Uma pessoa sã não se pergunta

por que ela está bem; uma pessoa doente se interroga

sem cessar sobre as causas de sua doença. Isso significa que a

própria pergunta apresenta um problema: ela carrega pressupostos

sobre a homossexualidade que devem ser explicitados e

examinados para saber se ela é ou não legítima nestes termos.

Não é de estranhar o fato de que o próprio Freud tenha escrito:

O estudo desse aspecto nos mostrará até onde essa questão

[se se tratava de um caso de homossexualismo congênito ou

adquirido] é estéril e despropositada”3.

Mesmo o vocabulário associado à homossexualidade é

cheio de controvérsias. É bom lembrar que, durante a Idade Média,

a palavra “sodomia” referia-se a toda uma série de práticas

sexuais consideradas pecaminosas, que incluíam a masturbação,

a felação, o coito anal, a bestialidade e o coito interrompido

em suma, todas as práticas sexuais que não tinham como

objetivo a procriação. Alguns teólogos consideravam também

sodomia o fato de um cristão ter relações com um judeu ou um

mulçumano: estes últimos sendo vistos como animais, qualquer

contato sexual com eles dizia respeito à bestialidade.

Na era moderna, os Estados substituíram a Igreja para

regulamentar, julgar e penalizar o comportamento sexual. A

homossexualidade masculina tornou-se punível de castração,

exílio ou de morte na maior parte da Europa, muito depois de

as outras práticas sexuais já terem sido descriminalizadas. Foi

no século XIX que apareceram os primeiros recursos para despenalizar

as práticas homoeróticas — o que não impediu que

Oscar Wilde tivesse sido condenado a dois anos de trabalhos forçados

em 1895, tendo por causa a sua relação com Lord Alfred

Douglas. As associações homófilas da Inglaterra e da Alemanha

procuraram redefinir a homossexualidade como um fenômeno

natural” (e, portanto, não “contranatura”), mas ainda não

normal”. A psiquiatria nascente considerou a homossexualidade

um sintoma de “degenerescência” (algumas vezes agravada

pela masturbação), no mesmo plano de doenças tais como o alcoolismo

ou a alienação mental — uma idéia ainda comum em

nossos dias, em certos meios especialmente conservadores.

Freud teve o enorme mérito de rejeitar a teoria da degenerescência

neste campo como em outros. Se ele via a homossexualidade

como um déficit na maturação psicossexual, não

constituía para ele uma doença. Como escreveu em

Trois essais

sur la théorie de la sexualité

:

Vários fatores permitem ver que os invertidos não são

degenerados nesse sentido legítimo da palavra: (1) Encontra-se a inversão em pessoas

que não exibem nenhum

outro desvio grave da norma; (2) Do mesmo modo, encontramola

em pessoas cuja eficiência não está prejudicada

e que inclusive se destacam por um desenvolvimento intelectual

e uma cultura ética particularmente elevados. […]

(a) é preciso considerar que nos povos antigos, no auge de

sua cultura, a inversão era um fenômeno freqüente, quase

que uma instituição dotada de importantes funções. 4

No decorrer do século XX, o movimento homofílico encontrou

importantes aliados entre os intelectuais. Em países

como a França e a Inglaterra, pensadores, escritores e artistas renomados

eram homossexuais, e personalidades tão eminentes

quanto Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir deram seu apoio

ao movimento em favor dos direitos civis para os homossexuais.

Aliás, esse movimento desenvolveu-se paralelamente às grandes

campanhas contra o racismo e o anti-semitismo. Estima-se que

dezenas de milhares de homossexuais e de lésbicas foram presos

na época de Hitler; muitos dentre eles morreram nos campos de

concentração. (Na verdade, a lei alemã contra a homossexualidade,

que permitiu essa perseguição, foi extinta em 1969.5)

Até mais ou menos vinte anos atrás, a psiquiatria também

violou os direitos civis dos homossexuais ao lhes infligir

(com ou sem seu consentimento) diversos tratamentos para

curá-los”. O método mais aberrante, usado nos anos 1950 e

60, era baseado no condicionamento aversivo: mostravam-se

ao homossexual imagens de homens nus, ao mesmo tempo

em que se aplicava um choque elétrico toda vez que aparecia

uma imagem suscetível de despertar o seu desejo. Mas também

se tentou a castração, a histerectomia, a lobotomia, e diversas

drogas6. Claro, os “tratamentos” desse tipo fracassaram,

e atualmente não são mais praticados.

Todas as pesquisas recentes mostram que é quase impossível

mudar a orientação sexual, mesmo quando uma pessoa

assim o deseja. Ademais, as tentativas desse tipo podem

ter conseqüências graves: o homossexual que procura “ser

curado” e não consegue acaba por se sentir ainda mais doente

e culpado do que antes. Como explicou a Associação Psiquiátrica

dos Estados Unidos no final de 1998, ao condenar formalmente

qualquer terapia visando “curar” a homossexualidade,

a terapia reparadora pode trazer danos aos pacientes, provocando

depressão, ansiedade e condutas autodestrutivas”7.

O grande salto em favor da liberação homossexual deuse

a partir dos anos 1960, essencialmente nos Estados Unidos e

com as manifestações contra a Guerra do Vietnã como pano de

fundo. O catalisador foi um confronto de homossexuais com a

polícia na Christopher Street em Greenwich Village, Nova York,

em junho de 1969. Foi a partir desse momento que começou a se

difundir o uso do termo “gay” (que na Idade Média significava comediante,

e no século XIX, prostituto) no lugar de “homossexual”.

A adoção desse termo representou um esforço para se afastar

do modelo médico e constituir uma identidade baseada no orgulho

da diferença (a palavra “gay”, em inglês, significa “alegre”).

Hoje, muitos autores fazem distinção entre pessoas homossexuais

e gays: as primeiras têm condutas homossexuais,

mas não se assumem como tais, enquanto as últimas assumem

plena e orgulhosamente sua orientação. Em outras palavras, se

todos os gays são homossexuais, todos os homossexuais não são

gays. A distinção é interessante, pois esclarece uma fase na construção

da identidade homossexual, tanto no plano individual

como no social, e tem importantes ressonâncias psicológicas,

sociológicas e históricas.

O debate sobre a homossexualidade permanece aberto,

e não é de interesse puramente teórico: a luta pelos direitos civis

da população gay, as alianças que podem surgir entre essa

e outras causas, a evolução da AIDS e outras questões sociais

dependem da definição dada à homossexualidade. Muitos aspectos

da vida pessoal estão também em jogo: como todos nós

homo ou heterossexuais — construímos nossa identidade sexual

e social, como estabelecemos nossas relações amorosas e

eróticas, como vivemos a amizade, como entendemos o mundo

atual, tudo isso pode variar segundo a percepção que cada

um de nós tem da homossexualidade.

Essa percepção não deveria mais se basear em preconceitos

nem na experiência que cada um de nós pode ter, mas no conhecimento.

Existe atualmente uma vasta literatura psicológica

e sociológica sobre esse tema — o que não era o caso apenas vinte

anos atrás. Antes, o que se podia “saber” sobre a homossexualidade

derivava principalmente de romances ou de confissões pessoais

relativamente escabrosas ou da teoria psicanalítica. E esta se

baseava, por sua vez, em casos isolados, ou em pura especulação.

O conhecimento da homossexualidade, como o da sexualidade

em geral, foi revolucionado pelos estudos de Alfred

Kinsey nos anos 1940 e 50. Ao estudar as práticas sexuais da população

americana a partir da aplicação de questionários e de

métodos estatísticos, ele inaugurou uma nova era nas pesquisas

sobre a sexualidade. Pela primeira vez, conseguiu-se saber o que

as pessoas faziam na vida real, graças a questionários precisos

e não mais a interpretações ou a suposições. Como o próprio

Kinsey observou na introdução à sua obra

Sexual behavior in the

human male

(1948), “antes de poder pensar cientificamente qualquer

um dos temas [associados à sexualidade], é necessário saber

mais acerca do comportamento real das pessoas”8.

Para estudar a homossexualidade, Kinsey desenvolveu a

famosa escala que leva o seu nome. Esta contém sete categorias,

indo de “exclusivamente heterossexual” até “exclusivamente

homossexual”, com cinco categorias intermediárias para medir

a experiência vivida pelos sujeitos. Entre outros dados, as

pesquisas de Kinsey mostraram que, se há relativamente poucas

pessoas nos dois extremos, em contrapartida há muitas nos

valores intermediários. Kinsey estabeleceu que as condutas homossexuais

não são de modo algum limitadas às pessoas exclusivamente

homossexuais, e que elas não podem ser consideradas

anormais”. Nessa lógica, não existe “homossexual” como tipo

peculiar de pessoa, mas somente práticas homoeróticas que se

encontram tanto nos heterossexuais como nos homossexuais.

Graças à sua escala, Kinsey demonstrou que as práticas homoeróticas

são, de fato, muito mais freqüentes do que se imaginava.

Suas pesquisas revelaram que 37% dos homens americanos

e 13% das mulheres tinham tido pelo menos uma experiência

homossexual chegando ao orgasmo. Esses números puseram fim

à antiga concepção da homossexualidade, segundo a qual apenas

indivíduos perversos, doentes ou criminosos podiam ter relações

eróticas com pessoas do mesmo sexo. Outros estudos americanos

mais recentes chegam a números que vão de 6% da população

até 17% das mulheres e 22% dos homens para a porcentagem da

população que teve relações homossexuais na idade adulta9. Por

exemplo, uma pesquisa de 1994 sobre os costumes sexuais dos

americanos estabeleceu que 7,1% dos homens estudados e 3,8%

das mulheres tiveram pelo menos uma experiência homossexual

desde a puberdade. Mas somente 2,7% dos homens e 1,3% das mulheres

tiveram esses contatos no decorrer do ano anterior — isto

é, em relações homossexuais relativamente atuais ou estáveis.

Esses dados coincidem com o número de pessoas que se definem

explicitamente homossexuais: 2,8% dos homens e 1,4% das mulheres10.

Estas são as porcentagens em geral aceitas atualmente

sobre a incidência da homossexualidade nos Estados Unidos. Mas

os dados variam segundo o país: na França, por exemplo, somente

1,1% dos homens e 0,3% das mulheres haviam tido relações

sexuais com pessoas do mesmo sexo ao longo dos doze meses

anteriores11. E somente 4,1% dos homens e 2,6% das mulheres

relatam pelo menos um contato sexual com alguém do mesmo

sexo no decorrer de sua vida.12

Os últimos três decênios viram proliferar esse tipo de estudos

quantitativos, cada vez mais precisos. Os pesquisadores nesse

assunto estudaram grandes amostras de homossexuais para

saber como vivem e como evoluem seus casais, tanto nas suas

relações cotidianas como nas diferentes etapas da vida. Existem

atualmente livros sobre a infância, a adolescência, a vida adulta

e a velhice dos homossexuais; sobre os casais que formam; sobre

as suas condições socioeconômicas e sua saúde; sobre suas famílias

de origem e até mesmo sobre suas preferências eleitorais.

Os pesquisadores têm igualmente transcrito e reunido milhares

de relatos de vida, nos quais os homossexuais falam de suas

experiências pessoais, familiares e sociais. Todo esse

corpus de

pesquisas nos oferece atualmente um conhecimento da homossexualidade

ao mesmo tempo vasto, preciso e confiável.

Uma parte dessas pesquisas confirmou uma idéia que

nasceu inicialmente no século XIX, e que foi adotada por Freud

e retomada por diversas associações médicas, psicológicas e psiquiátricas

de nossa época, segundo a qual a homossexualidade

não é uma patologia. Essa idéia foi inicialmente demonstrada

por uma psicóloga americana, Evelyn Hooker, em 1958. Ela aplicou

uma bateria de testes psicológicos em duas amostras de homens,

homossexuais e heterossexuais, e mandou os resultados

para vários especialistas a fim de que avaliassem a saúde mental

de cada indivíduo e depois o classificassem como homo ou heterossexual.

Os resultados foram surpreendentes. Os especialistas

se mostraram incapazes de diferenciar os homo dos heterossexuais,

e não encontraram nenhuma patologia que pudesse indicar

a homossexualidade. Ademais, o nível de saúde mental é

quase idêntico nos dois grupos, com uma leve vantagem para

os homossexuais. Hooker concluiu que, entre outros aspectos,

os homossexuais eram tão “normais” quanto os heterossexuais,

e que a homossexualidade, portanto, não podia ser considerada

uma categoria clínica.

Foi graças a estudos desse tipo, chegando sempre à

mesma conclusão, e aos esforços de um número crescente de

psiquiatras e psicólogos homossexuais que a Associação Psiquiátrica

dos Estados Unidos riscou a homossexualidade de

sua lista das patologias em 1973. Foi seguida pela Associação

de Psicologia do mesmo país em 1974, e pela Organização

Mundial de Saúde em 199213. Contudo, essas organizações reconheceram,

em seus respectivos manuais de diagnóstico, que

a pessoa que não aceita sua homossexualidade pode sofrer de

depressão, ansiedade e outros problemas psicológicos — mas

que estes derivam de pressões familiares e sociais e de conotações

negativas geralmente associadas à homossexualidade.

A homossexualidade, portanto, não é mais considerada

uma doença. Mas isso não quer dizer que os homossexuais não

apresentam problemas psicológicos particulares. Vários estudos

levantaram (pelo menos nos Estados Unidos) uma taxa de

suicídio elevada entre os homossexuais, comparada com a da

população heterossexual. Estima-se que um terço dos adolescentes

que se suicidam são jovens homossexuais e, de cada três

adolescentes homossexuais, um relata ter tentado se autodestruir14.

É importante destacar, contudo, que quase todas essas

tentativas ocorreram entre a idade de dezesseis e 21 anos.

Isso indica claramente que a adolescência é um período

particularmente perigoso para os homossexuais: não é fácil

admitir que somos diferentes nessa idade, sobretudo se essa

diferença for condenada pela sociedade. Mas isso não significa

que a homossexualidade em si seja patológica: o problema

reside na dificuldade de assumi-la perante si mesmo e diante

dos outros. Portanto, poderíamos dizer que a homossexualidade

provoca, em certas condições, conflitos psicológicos — um

pouco como pode ser difícil ser negro ou judeu, ou pertencer

a uma religião minoritária, em certos países.

No que concerne ao alcoolismo nos homossexuais, chegouse

a conclusões parecidas. Se, de fato, há uma incidência

mais elevada de alcoolismo entre a população homossexual

em geral, estudos recentes mostram que os homossexuais com

menos de trinta anos apresentam taxas semelhantes à dos heterossexuais

de sua idade15. Isso quer dizer que os jovens homossexuais

bebem menos que os homossexuais mais velhos,

o que não seria o caso se o alcoolismo fosse de algum modo

inerente à homossexualidade. Uma explicação possível é que

os homossexuais criados antes da liberação gay sofreram muito

mais com as pressões familiares e sociais. Portanto, aqueles

que hoje estão com mais de trinta anos tiveram uma juventude

mais difícil. Além do mais, durante muito tempo os únicos

lugares onde os homossexuais podiam se encontrar eram os

bares — o que não é mais o caso hoje, pelo menos nos países industrializados.

Atualmente, existem nos Estados Unidos e na

Europa associações gays em quase todas as grandes cidades.

Novamente, constatamos a enorme importância do contexto

social quando analisamos comportamentos problemáticos entre

a população homossexual.

É interessante ver também como o campo semântico da

homossexualidade (e a sexualidade em geral) deslocou-se no

decorrer da era moderna. Antes do século XVIII, a sexualidade

era examinada e julgada quase exclusivamente pela Igreja.

Mas o debate se estendeu aos poucos para incluir os filósofos,

os cientistas, os médicos e, claro, o Estado. A homossexualidade,

que ainda no início do século passado era uma questão

puramente moral e judicial, tornou-se objeto de estudo para

a medicina, a antropologia, a sociologia, a história, a psicanálise,

a psicologia e, enfim, a sexologia. Hoje, ela adquiriu

igualmente uma significação política — e não somente para os

homossexuais.

A homossexualidade foi discutida nas Nações Unidas

pela primeira vez na Conferência sobre a Mulher em Pequim,

em 1995. Durante um debate caloroso, que durou até as quatro

horas da manhã, as delegadas do mundo industrializado

defenderam a livre escolha das mulheres quanto à sua orientação

sexual, e os representantes dos países islâmicos e católicos

conservadores adotaram a posição oposta. Estes últimos sustentaram,

entre outros pontos, que era ridículo perder tempo

em discutir um caso que somente podia interessar a uma ínfima

minoria de mulheres. As delegadas dos Estados Unidos e

da União Européia retrucaram que a possibilidade de exercer

livremente a sua orientação sexual era crucial para todos os

direitos da mulher. Sem o direito ao lesbianismo (isto é, a uma

sexualidade independente da dos homens e da procriação), as

mulheres, na verdade, não teriam nenhum controle sobre sua

sexualidade e, portanto, sobre seu próprio corpo.

Essa discussão — finalmente vencida pelos conservadores

demonstrou muito claramente o papel que a homossexualidade

pode ter no debate político-social de nossa época.

Atualmente, quase todas as discussões sérias sobre os direitos

civis, a liberdade individual, a tolerância ou o pluralismo passam,

em algum momento, pelo debate sobre a homossexualidade.

Essa não é mais uma questão apenas de teólogos ou de

padres, de juízes ou de médicos: é um tema de reflexão para

cada um de nós.

Pode-se perguntar legitimamente por que a imensa

maioria dos estudos sobre a homossexualidade se refere quase

exclusivamente aos homens. Há várias explicações possíveis.

Em primeiro lugar, quase todos os textos que mencionam a sodomia

ou a homossexualidade — sejam eles literários, filosóficos,

históricos ou científicos —, desde a Idade Média, passando

pelo Renascimento, até a era moderna, foram escritos por homens.

Não esqueçamos o fato de que a palavra escrita foi desde

sempre (e continua a sê-la, em muitas sociedades) de domínio

exclusivo dos homens. Historicamente, foram eles que tiveram

acesso às esferas pública e política, ao mundo eclesiástico e,

claro, à educação.

Em segundo lugar, quase todas as proibições eclesiásticas

e as leis penais contra a homossexualidade tiveram como

objeto os homens. Por quê? Até época recente (com certeza até

a época de Freud), era impensável que as mulheres tivessem

uma sexualidade própria, isto é, independente da dos homens.

Antes dos estudos de sexólogos como Master & Johnson,

nos anos 1960, pensava-se que o orgasmo na mulher era exclusivamente

vaginal — e que, portanto, dependia da penetração.

Apenas muito recentemente se reconheceu a realidade do orgasmo

clitoriano, que possibilita o prazer sexual feminino sem

penetração. Isso ajudou a iniciar um imenso campo de pesquisas

sobre a sexualidade especificamente feminina, e portanto

sobre o lesbianismo como categoria que vale por si mesma — e

não mais como um pobre substituto do prazer “verdadeiro”.

Claro, muitas pessoas vêem ainda o lesbianismo como algo

que fazem as mulheres quando não têm mais alternativas ou

quando ainda não encontraram um homem de “verdade” que

pudesse lhes ensinar a sexualidade “adulta”.

Mesmo a rainha Vitória da Inglaterra (uma mulher extremamente

apaixonada, como mostram sua correspondência

e seus diários íntimos publicados há pouco tempo) recusou-se,

diz-se, a assinar um decreto de lei contra as práticas sexuais entre

mulheres, argüindo que não podia haver relações entre duas

mulheres e que, portanto, não havia necessidade de proibi-la.

Não hesitou, em contrapartida, em assinar uma lei punindo duramente

as práticas sexuais entre homens. Portanto, se as práticas

sexuais entre os homens sempre foi mais condenada do que

as das mulheres, é porque em boa parte se considerava que a

sexualidade em seu conjunto era uma questão masculina.

Em terceiro lugar, durante todo o século XIX e boa parte

do século XX (quando começa o estudo científico da homossexualidade),

a amizade entre mulheres foi vista como uma forma

de relação normal entre seres frágeis e inocentes que possuíam

grande sensibilidade, mas desprovidos de sexualidade. Ninguém

se surpreendia com relações amorosas entre mulheres, pois não

se imaginava que pudessem ser sexuais. Portanto, mesmo apaixonadas,

essas amizades não eram percebidas como carnais — e

elas talvez não o fossem. No final das contas, muitas mulheres

pensavam elas mesmas ser incapazes de uma sexualidade própria.

Ainda neste século, quando a sociedade já tinha aceitado a

possibilidade de relações sexuais entre mulheres, supôs-se que a

lésbica era apenas uma mulher “masculina”. E sempre, e ainda,

a sexualidade permanecia uma prerrogativa do homem.

Em quarto lugar, o feminismo (que promoveu tantas

pesquisas sobre a mulher em psicologia, em sociologia e em

história) guardou distância do lesbianismo por muito tempo.

Como até hoje, algumas figuras centrais do feminismo moderado

consideraram (talvez com razão) que sua causa seria

desqualificada se fosse identificada com o lesbianismo. Na

verdade, apesar dessa distância bastante marcada, a sociedade

em seu conjunto repudiou o feminismo durante longos anos

ao considerar que partia de uma rejeição do homem e, portanto,

de um lesbianismo relativamente camuflado. Isto explica o

porquê de as autoras feministas heterossexuais terem escrito

pouco sobre a homossexualidade.

Enfim, a crise da AIDS levou muitos pesquisadores, em

matéria de homossexualidade, a dar prioridade aos homens e

à dinâmica do casal masculino, em detrimento da mulher e da

relação lésbica. A necessidade imperiosa de entender melhor

os comportamentos e a psicologia do homossexual masculino,

com finalidades epidemiológicas, relegou ao segundo plano

os estudos sobre o lesbianismo. Aliás, era esperado. As lésbicas

constituem a população menos afetada pela AIDS: com efeito,

a natureza da relação física entre duas mulheres torna mais

difícil a transmissão do vírus por via sexual.

Tudo isso explica por que existe uma enorme desproporção

entre as pesquisas sobre as homossexualidades masculina

e feminina. Esse desequilíbrio começou a se atenuar,

contudo, ao longo dos últimos anos. Pelo menos nos Estados

Unidos, encontramos hoje extensa bibliografia sobre a mulher

e a relação lésbica. Esse

corpus de observações e de pesquisas revelou,

entre outras coisas, que a experiência e a significação da

homossexualidade variam consideravelmente entre homens e

mulheres. A dinâmica do casal é também muito diferente de

acordo com o sexo. Qualquer discurso ou estudo relacionado

com a homossexualidade deve, portanto, incluir uma análise

de gênero e fazer as distinções necessárias entre as homossexualidades

masculina e feminina.

É de suma importância o fato de que nós, na América

Latina, estejamos nos atualizando no âmbito da homossexualidade

como um todo. Em parte devido à AIDS, e em parte

graças a uma evolução da cultura que é natural na era da globalização,

os homossexuais tornam-se cada vez mais visíveis

em nossas sociedades. Ousam “sair do armário” e buscam, em

número cada vez maior, ajuda psicoterápica. Em muitos países,

contudo, ainda são poucos os psicólogos e psiquiatras que

conhecem o assunto em profundidade, devido principalmente

à carência de livros traduzidos para o espanhol.

Vale a pena ressaltar, no entanto, que muitos dos textos

publicados no Primeiro Mundo não seriam inteiramente aplicáveis

à realidade social de um país como o México, onde o

machismo perpetua estereótipos arcaicos, condutas e atitudes

que distorcem todas as relações humanas, não apenas entre

homens e mulheres, mas também entre pais e filhos, irmãos,

patrões e empregados etc. Em um país como o México, o filho

homossexual tem, por exemplo, uma função familiar sem equivalente

no mundo industrializado. Pressioná-lo para que “saia

do armário”, em favor de uma liberdade individual maior, poderia

ter conseqüências desastrosas. As relações familiares no

México são muito diferentes das que predominam nos Estados

Unidos, e sua análise nem sempre pode ser traduzida.

A homossexualidade é vivida e percebida de maneira radicalmente

diferente na Ásia, na Europa, na América Latina…

As estruturas e as relações familiares, os conceitos de masculinidade

e feminilidade, e até mesmo as definições de homossexualidade

variam imensamente. Os estudos sobre a homossexualidade,

portanto, não são necessariamente exportáveis, e

cabe aos psicólogos, sociólogos e pensadores de cada país levar

adiante as observações e as pesquisas nesse domínio. Nesse ínterim,

a homossexualidade continuará a ser muito mais estudada

nos Estados Unidos do que em outra parte: esse país foi o

lugar de nascimento da liberação gay e continua a ser o centro

desse tipo de estudo. Essa é a razão pela qual muitas referências

deste livro são tiradas da bibliografia americana — com

certeza uma limitação, mas que espero seja encorajadora aos

psicólogos e aos sociólogos de outros países, que busquem se

questionar de forma semelhante e avançar nas pesquisas em

suas próprias sociedades.

Esse esforço no conhecimento deverá ser feito paralelamente

à luta pelos direitos civis dos homossexuais. O empenho

político dos militantes gays deverá ser acompanhado de muito

trabalho de pesquisa e de divulgação. Resta muito a fazer. Espero

que este livro contribua para a tarefa, ajudando as pessoas

homossexuais, suas famílias e seus terapeutas a entender melhor

a sua vida cotidiana e a sua psicologia. O passo seguinte

será o de ampliar as redes de apoio, centros de pesquisa e de ensino

e listas de especialistas, para que as pessoas homossexuais

possam ter acesso a profissionais competentes e sem preconceitos,

nos campos da medicina, do direito e da psicologia.

Como qualquer população específica, os homossexuais

deveriam poder consultar profissionais que conheçam a fundo

seus problemas e suas necessidades. Exatamente como as

crianças, os adolescentes, as mulheres ou as pessoas da terceira

idade, os homossexuais apresentam toda uma série de

traços e dinâmicas específicas que merecem toda a atenção, o

conhecimento e o respeito daqueles que trabalham com eles.

Os homossexuais diferem dos heterossexuais em muitos pontos,

e eles têm o direito de ser reconhecidos em sua diferença

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